sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Se joga!


Esses dias resolvi começar uma outra atividade física: jiu-jitsu. Gosto de lutas e a que eu fazia não estava legal na academia que frequento. Como todo início de atividade, sabia que sentiria dificuldades, só não sabia que a minha dificuldade poderia estar relacionada simbolicamente às dificuldades que temos diariamente quando vamos começar algo do zero ou, como diz no texto anterior, recomeçar a partir de experiências já sofridas do passado. E a partir da experiência dessa aula, pensei em escrever esse texto relacionando uma recomendação do jiu-jitsu às nossas dificuldades de recomeço da vida: a frase “se joga”.

Explico: A prática dessa arte marcial exige que você esteja disposto a cair no chão e lutar com seu adversário. Na verdade, grande parte da luta ocorre no chão, no corpo-a-corpo e um dos passos básicos, exige que você caia para derrubar o outro de uma forma que você começa com a vantagem. Pois bem, durante a primeira aula o professor ensinou o passo a passo e quando fui executar, claro, estava com medo de cair no chão, de forma que o exercício não estava sendo bem executado. Escutei então, da colega que estava formando dupla comigo na luta: “Se joga”. Comecei a rir, nervosa, tentando executar, e ela continuou a repetir a frase. O professor se juntou a ela na orientação e disse: “vá, não tenha medo, se jogue”. Dei-me conta então do que significava o “se jogar”, o ir ao chão com a colega sem ter medo de me machucar, mesmo que o significado de cair nos transmita medo. Havia o tatame como proteção, mas ainda assim, como cair sem medo? Aos poucos, fui perdendo o medo e fui executando o passo corretamente. Saí da aula com uma boa sensação de dever cumprido e relacionando a frase a vida.

Quando estamos diante de situações da vida que se parecem com algo que já vivemos, temos o hábito de reagir a elas como se elas fossem situações que já passamos, mas elas nem sempre são, só parecem. E ao reagir como reagimos a situações anteriores, muitas vezes, deixamos de viver novas experiências que poderiam nos trazer benefícios. Por exemplo, ao terminarmos relacionamentos, ficamos machucados com a dor do término e podemos ficar receosos diante de possibilidades de início de outros relacionamentos. Assim, podemos ter comportamentos de fuga de novos relacionamentos ou simplesmente não conseguir interagir de fato com outras pessoas de modo que o relacionamento simplesmente ocorra. (O que a análise do comportamento chama de esquiva) Ou se alguém for demitido e ao ser contratado por outra empresa, tender a emitir sempre comportamentos de fuga de situações que na empresa anterior levaram à sua demissão, o que não é saudável, uma vez que é uma outra empresa, um outro ambiente e devemos estar sensíveis às novas consequências e não só a nossa história anterior. Assim como no jiu-jitsu, é necessário que a gente “se jogue” e esteja disposto a apreender o que essa nova história vai nos ensinar. Nem todas as quedas são iguais. Nas quedas em que geralmente vamos ao chão, podemos ficar machucados. Na queda do exercício dessa arte marcial, também existe a possibilidade de se machucar, mas há a possibilidade de aprendizagem de um novo comportamento, necessário para o seguimento da prática.
Que saibamos diferenciar as possibilidades de queda e possamos nos jogar dispostos a viver às novas experiências de vida de acordo com as novas contingências ambientais.


domingo, 21 de agosto de 2016

A vida, o recomeço e a importância dos pais na construção de um repertório comportamental

Esses dias venho pensando na questão do recomeço e de como ele é importante. Na verdade, o importante é ter a habilidade de recomeçar ou de viver um recomeço necessário. Na Análise do Comportamento, poderíamos chamar de repertório comportamental para recomeços. Mas por que é tão importante assim? Bom, primeiro, se a gente parar para analisar a nossa própria vida, vamos descobrir que ela não é exatamente muito estável e que por vezes é digna de uma série de aventuras do Netflix. Se sairmos da nossa vida e olharmos para as mudanças ocorridas no nosso país e no mundo nos últimos 30 anos, aí sim, poderíamos comparar a diversas séries. Há quem diga, por exemplo, que os últimos acontecimentos políticos do Brasil estavam ganhando de “House of cards”.

Talvez o período de vida mais estável seja a infância, e não porque essa fase do desenvolvimento seja exatamente estável, mas porque geralmente contamos com a proteção dos adultos para lidar com os problemas maiores. (Nem sempre essa é a realidade, infelizmente, e muitas crianças precisam lidar com problemas outros na infância. Alguns deles acabam desenvolvendo esse repertório de que fala o texto da forma mais difícil, outros, entretanto, por exposição a problemas demais, acabam desenvolvendo outros problemas, mas aí a discussão fica pra outro texto!!!) Na adolescência, entretanto, é saudável que os pais/adultos responsáveis deixem que o jovem vá descobrindo e lidando com as descobertas, e aí começa um turbilhão, para além das descobertas do próprio corpo. Trata-se de uma fase de descobertas e das primeiras vivências de instabilidades, das primeiras das muitas mudanças da vida que a pessoa terá que passar e administrar. 
Na análise do comportamento, chamamos as nossas reações frente a situações de mudança brusca de resistência à extinção ou resistência à mudança. Como assim? Bom, em toda e qualquer situação na vida existem reforçadores ou alguma forma de de prazer. Se emitimos um comportamento, é porque ele está sendo reforçado ou existe a probabilidade de reforçamento na contingência ou situação, ou seja, há um ganho provável de prazer ali. E se essa contingência ou situação mudar, por mais que venhamos a ter outros reforçadores e que eles sejam inclusive de maior magnitude ou valor, vamos passar pela perda de alguns, ou seja, a extinção. E, geralmente, na extinção, temos a resistência a extinção. A resistência à extinção nada mais é do que uma tentativa de obter o reforço novamente. Ou seja, é uma resistência à mudança da contingência. As pessoas reagem de diversas formas a essas mudanças. Seja simplesmente reclamando e chorando a perda do reforçador (a forma mais comum) ou fazendo algo de efetivo para retomar o reforçador de alguma forma.




     E as pessoas vão reagir de diferentes formas a essas mudanças por mais que elas sejam bem semelhantes. E por que? Pelas diferentes formas como foram ensinadas a reagir às pequenas mudanças da vida. Se quando adolescentes os pais sempre deram reforço por pequenos esforços, ou seja, acabaram por não ensiná-lo a se esforçar, ele tende a desistir em pequenas dificuldades. E por que? Porque não está acostumado. Mas e se nas situações do dia a dia o adolescente e jovem tiver que lidar com o fracasso algumas vezes e entender que a vida tem sim seus momentos difíceis e não é sempre que seus pais poderão lhe dar aquilo que ele quer e que pra isso terá que se esforçar, provavelmente se tornará um adulto que conseguirá lidar melhor com as mudanças da vida. Muitas vezes, o desafio dos pais está em deixar as crianças aprenderem com as consequências dos seus próprios comportamentos. Skinner, ao se referir a si mesmo com relação a sua própria filha, disse:
"em meu afã de ajudar a menina, destruo as contingências que a ensinariam a ajudar-se a si mesma. Por exemplo, separo os galhos que lhe batem no rosto e a privo da oportunidade de aprender a evitá-los. Ponho-lhe as meias e a privo de que aprenda a fazê-lo por si mesma (Skinner, 1980, p. 12).
Assim, se há um legado que podemos deixar para nossos filhos talvez seja esse. O aprender a recomeçar. O que Cecília Meireles já falou poeticamente: aprender com a primavera a deixar-se cortar e a voltar sempre inteira. Não é fácil, mas o caminho está em deixar pequenas dificuldades para que eles a conheçam. Pequenos espinhos para que eles se cortem e, por mais que esse sangue doa em nós agora, mais tarde, eles já conheçam um pouco dessa dor e consigam lidar melhor com ela.






segunda-feira, 11 de abril de 2016

Autismo, Sociedade e Análise do Comportamento


A Análise do Comportamento é uma abordagem da Psicologia que rompe com a visão tradicional do homem como causador de um comportamento, reconhecendo o papel fundamental do contexto em que ele ocorre e sua ação selecionadora. Para Skinner (1981/2007), o comportamento é analisado a partir do modelo de seleção pelas consequências, que é dividido em três níveis: filogenético, ontogenético e cultural. No primeiro nível, o homem é visto como um organismo fruto de processos biológicos evolutivos e o comportamento é visto como um processo natural. Assim, nesse nível, o comportamento é analisado a partir de suas origens genéticas. A ontogênese refere-se à história de vida de um sujeito e se estuda como o comportamento foi selecionado pelo seu contexto dentro de sua história de vida. O comportamento é compreendido como selecionado pelo seu ambiente ao longo do tempo e é visto como funcional, ou seja, todo comportamento possui uma função dentro do contexto em que foi emitido. Já no nível cultural, o comportamento é estudado a partir das influências que recebe em âmbito social e cultural e como a função de um comportamento pode estar relacionada ao momento histórico-social em que está inserido.


                                               

            Crianças que são diagnosticadas com o Transtorno do Espectro Autista – TEA, geralmente emitem comportamentos que são vistos como “atípicos” ou “disfuncionais”, “estranhos”, dentre outros adjetivos. Entretanto, para a análise do comportamento, os comportamentos são todos funcionais na história de cada sujeito, não sendo, como afirmam Banaco, Zamignani e Meyer (2010), compatível com uma divisão classificatória comum em manuais médicos, com base apenas da topografia dos comportamentos, e não em suas funções. E se estamos nos propondo a analisar os comportamentos de uma criança autista a partir de um olhar comportamental, é necessário que o analisemos a partir dos três níveis de seleção pelas consequências. Para isso, vamos nos utilizar de comportamentos denominados socialmente de estereotipias. Crianças autistas ou com algum espectro autista tendem a emitir alguns comportamentos sem função aparente, pois aparecem de modo aleatório e algumas vezes são “estranhos” e muitas vezes “autolesivos”. Como analisar, por exemplo, o comportamento de uma criança bater a cabeça na parede? Que criança o emite? Como é a sensibilidade da criança em outras ocasiões? Em que contexto esse comportamento ocorre com mais frequência? Quais as consequências que se seguem a ele? Como esse comportamento é visto socialmente?

                                       

            Primeiro é preciso pensar no comportamento a partir do nível filogenético. É sabido que crianças com TEA possuem uma sensibilidade genética diferente de pessoas denominadas “típicas”, e pode ser maior ou menor. Nesse caso, ao observar esse comportamento, um analista do comportamento precisa estar atento às perguntas feitas acima. Entendamos que a criança desse exemplo possui uma baixa sensibilidade à dor, por exemplo. (isso pode ser observado a partir de outras ocasiões em que a criança foi submetida a dor.) Além disso, crianças com TEA possuem também uma necessidade de auto-regulação e auto-estimulação. De acordo com alguns autistas adultos, é assim que conseguem se organizar. Ora, isso é uma sensibilidade genética. Assim, os comportamentos de estereotipia podem ser naturalmente reforçadores e, se há uma baixa sensibilidade à dor, bater a cabeça na parede pode ser naturalmente reforçador a partir da auto-estimulação, ao mesmo tempo em que não tem consequências aversivas a curto prazo, já que não se sente tanta dor.
            Se pensamos nesse comportamento no nível ontogenético é preciso observar o contexto em que o comportamento é emitido, ou seja, é necessário estar atentos ao ambiente em que esse comportamento se torna mais frequente e também as consequências que se seguem a ele e podem estar fortalecendo sua emissão. Assim, se de acordo com o exemplo, a criança bate a cabeça com mais frequência em ambientes em que o som esteja alto ou que tenham muitas cores no ambiente e se a criança se desorganiza nesses ambientes e tende a repetir o comportamento de bater a cabeça na parede, pode ser que esse comportamento tenha a função de promover a reorganização, ou seja, ao se auto-estimular, a criança foge das sensações aversivas que um ambiente lhe traz. Assim, seu comportamento está sendo seguido por um reforço negativo, já que está aumentando de frequência e tem a função de retirar algo aversivo do ambiente.

                                            

            Finalmente, se pensarmos no comportamento no nível cultural, é preciso considerar como a sociedade em que estamos inseridos classifica esse comportamento. Geralmente, ele é definido como “bizarro” ou “estranho”, mas como foi visto, ele possui uma função. Entretanto, se ele é visto como negativo, é possível que haja uma maior tendência social a negá-lo, a diminuí-lo, a rechaçá-lo de alguma forma. Mas, fica o questionamento: por que é tão necessário esconder que uma criança se comporta de uma determinada forma? No caso de uma criança bater a cabeça, pode trazer uma consequência aversiva a longo prazo, como uma lesão. Nesse caso, pode-se pensar em alternativas que não levem a essa consequência, mas essa alternativa provavelmente não parecerá “menos autista”, como por exemplo, balançar a cabeça longe de uma parede ou bater palmas. Bonoli questiona, em um blog que trata do tema (http://lagartavirapupa.com.br/maos-quietas-aba-e-estereotipias/), por que nossas crianças têm que se parecer menos autistas para serem aceitas socialmente. Fica o questionamento: nesse caso, o que precisa mudar? A sociedade ou o comportamento?

                               


Referências:

Banaco, R. A., Zamignani D. R. & Meyer, S. B. (2010). Função do Comportamento e do DSM: Terapeutas Analítico Comportamentais Discutem a Psicopatologia. Em E. Z. Tourinho & S. V. Luna (Orgs), Análise do Comportamento: Investigações Históricas, Conceituais e Aplicadas. (pp. 175-191). São Paulo: Roca.
Skinner, B. F. (1981/2007). Seleção por conseqüências. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 9, 129-137. (Originalmente publicado em 1981).

segunda-feira, 7 de março de 2016

Violência de Gênero e a Análise do Comportamento.




A ideia de escrever esse texto veio de alguns atendimentos na Vara de Violência Doméstica do Tribunal de Justiça da Paraíba, comarca de João Pessoa, onde atuo como psicóloga em um dos trabalhos que venho considerando um dos mais desafiadores da minha história profissional. Além disso, fazia tempo que eu queria escrever sobre a psicologia jurídica e análise do comportamento e a ideia foi sendo adiada, por diversos motivos. O dia chegou. Vou ficar devendo um texto de infância e psicologia jurídica, mas ele virá. O momento e a semana pedem um texto de empoderamento feminino e como uma analista do comportamento enxerga esse tema.

O que um psicólogo faz em situações de violência de gênero? Em termos leigos, tenta promover a sensação de que ela pode fazer o que precisa e quer fazer, apesar da dor que permeia um relacionamento marcado pela violência de gênero. Em termos analítico-comportamentais penso que seria fornecer avaliações funcionais para que ela perceba que seus comportamentos e sentimentos de sofrimento fazem parte de uma contingência aversiva, como a violência doméstica, embora também repleta de reforçadores e dar subsídios para ela mudar essa contingência por meio de comportamentos autocontrolados.

Oc – Cpto – Sr+ (curto prazo)
                      Sr- (curto prazo)                    
                      P+ (médio/longo prazo)


Sim, geralmente mulheres que estão em sofrimento por fazerem parte de um relacionamento permeado pela violência de gênero ou popularmente conhecido hoje como um relacionamento abusivo, em geral trazem uma história cuja contingência básica de partida seria essa mesma. Assim como a de qualquer pessoa que procure a clínica porque não consegue sair de uma determinada situação que lhe causa sofrimento a longo prazo, ou seja, não consegue emitir comportamentos de autocontrole.
De acordo com Skinner (1974), “uma pessoa que tomou consciência de si por meio de perguntas que lhe foram feitas pela comunidade está em melhor posição para prever e controlar seu próprio comportamento” (pg. 35), ou seja, para que a pessoa consiga emitir comportamentos de autocontrole ou modificar contingências aversivas em que está inserida, é necessário primeiro que consiga descrever as variáveis que controlam seu comportamento. Nesse sentido, sim, uma mulher para sair de um relacionamento permeado pela violência de gênero precisa emitir comportamentos autocontrolados a partir do momento que consiga descrever as contingências que controlam seu comportamento de permanecer nesse relacionamento. Mas por que precisar emitir comportamentos autocontrolados para sair de uma contingência aversiva como a violência doméstica? Conceito básico na Análise do Comportamento: se um comportamento continua sendo emitido, há reforçadores que o mantém, mesmo que a contingência aversiva esteja ali e provoque tanto sofrimento. E que reforçadores? Vou elencar aqui algumas frases fortes entre textos lidos e atendimentos realizados:

“Não entendiam que, além de abusar de mim, ele era meu confidente, a pessoa para quem eu cozinhava, a pessoa que passava o domingo chuvoso assistindo TV comigo, a pessoa que ria comigo, a pessoa que me conhecia.” (texto Ele nunca me bateu – Um relato de um relacionamento abusivo, disponível em: http://keylaartes.blogspot.com.br/2016/02/ele-nunca-me-bateu-um-relato-de-um.html)

“ele foi a primeira pessoa que me chamou de linda e me valorizou. Foi ele quem cuidou de mim quando eu perdi meu pai e minha mãe arranjou um padrasto que me assediava”.

“como vou fazer pra viver sem ninguém dentro de casa, se eu me separar dele?”

“A mesma mão que me bate, me cuida e me acaricia."

"A sra. pode pedir pra ele parar de me bater?"

       



Nessas frases é possível perceber alguns dos reforçadores que mantêm um comportamento feminino de perdoar e permanecer em um relacionamento abusivo. Muitas vezes são os mesmos que mantém qualquer pessoa a emitir comportamento de se engajar em um relacionamento: reforçadores positivos, como carinho, companhia, risos, beijos, sexo, etc. Há também reforçadores negativos fortes, como esquiva da solidão, esquiva do sofrimento da perda dos reforçadores. Muitas vezes, em um relacionamento com a forte presença da violência de gênero, a mulher rompe o relacionamento no momento da agressão, mas volta a se relacionar com o parceiro após sentir a perda dos outros reforçadores e um pedido de perdão do parceiro. A fragilidade do término do relacionamento pode ainda tornar o pedido de perdão mais reforçador, aumentando a probabilidade que ela volte a se engajar no relacionamento abusivo. Mas, ao voltar com o relacionamento, há o reforçamento de uma cadeia de comportamentos que tendem a se repetir. Além disso, se os reforçadores do comportamento masculino continuam a existir, não há mudança de comportamento. Por isso, a existência do denominado “ciclo de violência”, que, de acordo com Carmo e Moura (2010), funcionaria em um sistema circular e estaria dividido em três fases: a fase da tensão, em que se caracteriza a presença de discussões do casal e que antecede a fase da explosão, em que ocorre a violência em si, que pode acontecer de maneira física ou psicológica, havendo depois a chamada terceira fase, denominada de lua de mel ou reconciliação, em que é marcada pelo arrependimento do agressor, desculpas e promessas.
                                                   

Mas não é só isso. Já nos lembrou Skinner, quando disse que “Escolhemos o caminho errado desde o princípio quando supomos que nossa meta é "mudar a mente e o coração" dos homens e mulheres, no lugar do mundo no qual eles vivem.”  Por que a violência de gênero existe e persiste há tanto tempo?

De acordo com Carmo e Moura (2010) a violência de gênero trata-se de um fenômeno cultural e histórico em que se observa que as relações entre mulheres e homens têm sido historicamente desiguais, tendo a população feminina sido subordinada a ditames masculinos e a uma cultura criada e regulada por homens que, até hoje impõem ou tentam impor normas de conduta às mulheres e as devidas correções ao descumprimento dessas regras, muitas vezes de forma sutil, embutidas nesse relacionamento.
Ora, se uma mulher está inserida em um relacionamento marcado pela violência doméstica, diversos dos seus comportamentos vão ser marcados por essa prática cultural.  Skinner (1953, 1981, 1987) alerta para a necessidade da análise da cultura, fenômenos e problemas sociais pela Análise do Comportamento manifestando seu interesse em que outros analistas do comportamento também o estudassem, quando dedica boa parte do livro “Ciência e Comportamento humano” a falar de cultura, agências de controle e comportamento de pessoas em grupo. Para esse autor, o comportamento, além de mantido pelo nível filogenético e ontogenético, também é controlado pelo chamado terceiro nível de seleção, sendo esse o campo das contingências especiais de reforçamento mantidas por um grupo.
Pode-se dizer que a violência de gênero se trata de uma prática cultural em que há a presença de uma classe de comportamentos cuja função é a subordinação de uma mulher ao homem, ou seja, ter e manter uma mulher como seu objeto de prazer por meio de forças coercitivas. Essas forças coercitivas podem envolver a violência psicológica, como frases que envolvem a destruição de sentimentos relacionados a autoestima e a autoconfiança ou mesmo a agressão física. Os reforçadores de um homem ao engajar nesses comportamentos de manter uma mulher submissa são vários, tendo sido essa cultura transmitida de geração em geração. Vejam que a agressão física se trata apenas de uma forma de subordinação feminina, apesar de ser a mais divulgada socialmente. Mas e as outras subordinações? A violência começa quando é a mulher que tem que “cuidar do marido, da casa e dos filhos” e não somente quando ela apanha. A violência existe quando a mulher escuta: “se comporte que homem gosta de mulher quietinha”. A violência está presente quando a mulher é pressionada a perdoar uma traição por ser “coisa de homem”. A violência aparece quando se propaga o medo em mulheres viajarem “sozinhas”, mesmo estando acompanhadas umas das outras. A violência se veste de cuidado quando a mulher tem que pensar na roupa que vai vestir por medo de ser assediada. 



                                    


 Assim, a violência é passada desde cedo aos meninos e meninas por meio de pequenas práticas culturais da nossa educação. Os homens são ensinados desde cedo a serem privilegiados em nossa cultura e a terem diversos reforçadores por meio das mulheres ou pela submissão delas. A agressão física é apenas uma topografia desse comportamento que tem a mesma função de tantos outros que permeiam os relacionamentos e que tendem a cercear a liberdade feminina de diversas formas. Assim, ao se pensar em mudança social e na promoção da diminuição da violência de gênero, deve-se pensar na mudança da função do comportamento masculino e não na mudança de topografia. É preciso mudar toda a prática cultural existente.  
Ao longo da história, sempre existiram mulheres que lutaram contra a submissão masculina de alguma forma e tentam mudar essa prática cultural. O dia 08 de março, é na verdade, um dia que lembra a luta das mulheres pela não submissão, emitindo comportamentos de luta e resistência, que podem ser chamados de comportamento de contracontrole, que é definido por Skinner basicamente como uma reação dos controlados diante do controle aversivo emitido. Esse texto, como tantos outros produzidos hoje podem ser uma forma de contracontrole e foi feito em homenagem às mulheres que lutaram e lutam por uma sociedade sem tantos controles aversivos.  A análise dessa luta ficará pra um outro texto, mas a luta já está aqui!



quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Uma reflexão analítico-comportamental acerca das super-mães

Texto da minha autoria, de 2012, originalmente publicado no site comporte-se. 
A ideia desse texto veio a partir de uma pergunta na sala de aula sobre os processos comportamentais. O assunto explanado era extinção e, para melhor compreensão do tema, passei um vídeo conhecido com uma criança chorando deitando-se no chão tentando chamar a atenção da mãe que passa sem olhar pra cena. Ele pode ser facilmente acessado aqui. Expliquei que os comportamentos da criança poderiam ser compreendidos como uma forma de resistência à extinção. Como assim?
A extinção é um processo comportamental definido como a retirada de um reforço contingente a um comportamento. (Skinner, 1953; Moreira & Medeiros, 2006). Já a resistência à extinção pode ser caracterizada pelo aumento da frequência de um determinado comportamento, a variabilidade comportamental e o aparecimento de respostas emocionais. (Skinner, 1953, Moreira &Medeiros, 2006). Com base nesses conceitos explanei que a criança do vídeo em questão, provavelmente estava passando por um processo de resistência à extinção dos comportamentos com função de receber atenção materna. Diante disso, um aluno perguntou: professora, se a mãe der atenção a esses comportamentos de resistência, eles serão reforçados, não é? (orgulho!) Mas e então, o que fazer? Deixar a criança chorando? E a pergunta capciosa: eu posso dizer que essa criança, tão pequena (ela tem uma aparência de 1 ano e meio), está manipulando a mãe?
Com relação às primeiras perguntas, respondi que o ideal seria o que os analistas do comportamento denominam “reforçamento diferencial de outro comportamento”, técnica também conhecida pela sigla DRO. (Moreira e Medeiros, 2006, Catania, 1999). Esse procedimento caracteriza-se pela aplicação da extinção de um determinado comportamento, no caso específico do vídeo, o ato de chorar ou jogar-se ao chão, bem como o reforçamento de outros comportamentos da criança, como, por exemplo, brincar, sorrir, ficar quieta, etc. Diante da resposta, surgiram algumas críticas pertinentes aos pais, e, em especial às mães, que, atualmente não brincam mais com seus filhos, passam o dia trabalhando e os deixam nas mãos dos avós, babás ou ainda, nas creches em turno integral.
No que tange à manipulação da criança, relacionei este comportamento com o uso do termo consciência, explicando que nesse caso é possível não existir esse paralelo, já que essa criança provavelmente não é capaz de falar sobre os seus comportamentos ainda. De acordo com Skinner (1969), a consciência é entendida como a capacidade de descrição verbal das contingências que estão sob controle de um comportamento. Expliquei que as contingências modificam nossos comportamentos, mas não necessariamente, somos capazes de discriminar essa modificação. Aliás, de acordo com Skinner (1974), a maioria dos nossos comportamentos é inconsciente, ou seja, não ocorre essa discriminação. Passei então a explicar que a birra era relativamente comum nas crianças porque durante sua história de vida, seus comportamentos de choro eram seguidos de reforços como atenção, carinho, comida, água, etc. Assim, o chorar torna-se um comportamento bastante fortalecido em seu repertório comportamental.
Quando as crianças ficam maiores, são ensinados e reforçados outros comportamentos, entretanto, ao ser apresentado a extinção, tem-se no repertório da criança um comportamento que já foi bastante reforçado e apresenta-se como uma das primeiras alternativas da resistência: o chorar. O choro é aversivo para os pais, que, muitas vezes, chegam de seus trabalhos cansados, e, como forma de retirar esse estímulo aversivo do seu ambiente, cedem às vontades da criança, tendo seus comportamentos reforçados negativamente.
Considerando as críticas feitas aos pais que não querem mais brincar com seus filhos, fiz a reflexão acerca do papel social das mães, que, ainda hoje, são, na maioria dos casos, mais responsáveis pela criação das crianças, pelo menos na primeira infância. Durante os primeiros meses da criança, a mãe recebe uma licença maternidade pra ficar com seu filho e cuidar dele. Assim, é ela, e, na maioria das vezes, só ela é responsável por observar e dar o que ele quer. Às vezes, costuma-se pensar: muito justo, afinal de contas, é filho dela e ela não está trabalhando, enquanto o pai está. Quando os pais chegam a casa, desculpam-se de estarem cansados e, quando a criança chora, chamam a mãe. Ora, cuidar de crianças deve ser um trabalho bastante cansativo também, além do que, muitas vezes, podem ser mantidos em esquemas de reforçamento com alto custo de resposta e recebimento mínimo de reforços, possivelmente um esquema de razão variável com razões altíssimas. De acordo com Catania (1999), esquemas de razão com taxas muito altas ocasionam a diminuição da taxa de respostas, porque as taxas altas e contínuas passam a ser frequentemente interrompidas por grandes pausas pós-reforços.
Assim, o acúmulo de cansaço dessas obrigações e funções de mãe e dona de casa pode resultar no comportamento da mãe de olhar a criança e dar atenção a ela somente quando a criança chorar, pois enquanto ela está quieta, pode-se aproveitar o tempo e fazer algo pra si ou mesmo cuidar da casa. Assim, os comportamentos de chorar são reforçados continuamente, enquanto outros comportamentos como brincar, sorrir e ficar quieto só são reforçados em algumas ocasiões. Se por um lado, esses outros comportamentos tornam-se mais resistentes à extinção, por outro, o comportamento de chorar torna-se mais fortalecido. Ao mesmo tempo, o chorar pode ir adquirindo mais ainda a função de estímulo aversivo, pois ele pode acontecer no momento em que ela estava fazendo algo importante para si, tendo que parar a atividade para ver a necessidade da criança.
Quando acaba o período de licença maternidade, a mãe se depara com o fato de ter que voltar a trabalhar e se separar temporariamente da criança. Ao chegar a sua casa, muitas vezes, tem que cumprir com as mesmas obrigações do período de licença-maternidade, como por exemplo, brincar com o filho, que pede sua atenção. Além disso, tem que alimentá-lo, banhá-lo e ensinar tarefas da escola, caso já estude. Não são raras as vezes que escuto no consultório que só quem faz isso são as mães. Quando os pais vão até a clínica, no momento dessa pergunta, respondem: “as mães tem mais jeito pra essas coisas”.
Assim, muitas vezes, as mães cumprem jornadas duplas de trabalho, trabalhando e cuidando da casa e dos filhos, além do emprego. E o cansaço dessa jornada dupla pode ser ocasião para comportamentos de fuga e esquiva com relação aos choros e birras da criança. Entretanto, a “supermãe”, ou seja, a que cuida dos filhos, do marido, da casa e ainda trabalha fora é o que há de mais valorizado em nossa sociedade, principalmente nesse período, às vésperas do dia das mães. Diante disso, questiono: qual o valor cultural da supermãe?
Inicialmente, a valorização da supermãe parece ser o de parabenizar as mulheres que conquistaram o fato de poder trabalhar fora de casa e continuam cumprindo seu papel de mãe na sociedade, que é colocado como o de cuidar dos filhos. Mas, além disso, essa valorização pode cumprir função de esquiva para os homens, que, muitas vezes, diante das obrigações com os filhos, preferem que a mulher continue a cuidar deles. Além disso, o papel da supermãe pode, muitas vezes, ser enxergado como uma obrigação materna. A obrigação tem um teor de controle aversivo, podendo gerar, futuramente, subprodutos ligados a esse processo, como a diminuição da frequência de outros comportamentos e o aparecimento de respostas emocionais. Assim, essa prática cultural, apesar de ter consequências em curto prazo que a mantém, pode trazer consequências em longo prazo aversivas para as famílias. A partir da reflexão sobre a função social que o termo supermãe possui, lançamos aqui a discussão sobre possibilidades de mudança.