A ideia de
escrever esse texto veio de alguns atendimentos na Vara de Violência Doméstica
do Tribunal de Justiça da Paraíba, comarca de João Pessoa, onde atuo como
psicóloga em um dos trabalhos que venho considerando um dos mais desafiadores
da minha história profissional. Além disso, fazia tempo que eu queria escrever
sobre a psicologia jurídica e análise do comportamento e a ideia foi sendo
adiada, por diversos motivos. O dia chegou. Vou ficar devendo um texto de
infância e psicologia jurídica, mas ele virá. O momento e a semana pedem um
texto de empoderamento feminino e como uma analista do comportamento enxerga
esse tema.
O que um psicólogo
faz em situações de violência de gênero? Em termos leigos, tenta promover a
sensação de que ela pode fazer o que precisa e quer fazer, apesar da dor que
permeia um relacionamento marcado pela violência de gênero. Em termos
analítico-comportamentais penso que seria fornecer avaliações funcionais para
que ela perceba que seus comportamentos e sentimentos de sofrimento fazem parte
de uma contingência aversiva, como a violência doméstica, embora também repleta
de reforçadores e dar subsídios para ela mudar essa contingência por meio de
comportamentos autocontrolados.
Oc – Cpto –
Sr+ (curto prazo)
Sr- (curto prazo)
P+ (médio/longo prazo)
Sim, geralmente
mulheres que estão em sofrimento por fazerem parte de um relacionamento
permeado pela violência de gênero ou popularmente conhecido hoje como um
relacionamento abusivo, em geral trazem uma história cuja contingência básica
de partida seria essa mesma. Assim como a de qualquer pessoa que procure a
clínica porque não consegue sair de uma determinada situação que lhe causa
sofrimento a longo prazo, ou seja, não consegue emitir comportamentos de
autocontrole.
De acordo com
Skinner (1974), “uma pessoa que tomou consciência de si por meio de perguntas
que lhe foram feitas pela comunidade está em melhor posição para prever e
controlar seu próprio comportamento” (pg. 35), ou seja, para que a pessoa
consiga emitir comportamentos de autocontrole ou modificar contingências
aversivas em que está inserida, é necessário primeiro que consiga descrever as
variáveis que controlam seu comportamento. Nesse sentido, sim, uma mulher para
sair de um relacionamento permeado pela violência de gênero precisa emitir
comportamentos autocontrolados a partir do momento que consiga descrever as
contingências que controlam seu comportamento de permanecer nesse
relacionamento. Mas por que precisar emitir comportamentos autocontrolados para
sair de uma contingência aversiva como a violência doméstica? Conceito básico
na Análise do Comportamento: se um comportamento continua sendo emitido, há
reforçadores que o mantém, mesmo que a contingência aversiva esteja ali e
provoque tanto sofrimento. E que reforçadores? Vou elencar aqui algumas frases fortes
entre textos lidos e atendimentos realizados:
“Não entendiam
que, além de abusar de mim, ele era meu confidente, a pessoa para quem eu
cozinhava, a pessoa que passava o domingo chuvoso assistindo TV comigo, a
pessoa que ria comigo, a pessoa que me conhecia.” (texto Ele nunca me bateu – Um
relato de um relacionamento abusivo, disponível em: http://keylaartes.blogspot.com.br/2016/02/ele-nunca-me-bateu-um-relato-de-um.html)
“ele foi a
primeira pessoa que me chamou de linda e me valorizou. Foi ele quem cuidou de
mim quando eu perdi meu pai e minha mãe arranjou um padrasto que me assediava”.
“como vou
fazer pra viver sem ninguém dentro de casa, se eu me separar dele?”
“A mesma mão
que me bate, me cuida e me acaricia."
"A sra. pode pedir pra ele parar de me bater?"
Nessas frases
é possível perceber alguns dos reforçadores que mantêm um comportamento
feminino de perdoar e permanecer em um relacionamento abusivo. Muitas vezes são
os mesmos que mantém qualquer pessoa a emitir comportamento de se engajar em um
relacionamento: reforçadores positivos, como carinho, companhia, risos, beijos,
sexo, etc. Há também reforçadores negativos fortes, como esquiva da solidão,
esquiva do sofrimento da perda dos reforçadores. Muitas vezes, em um
relacionamento com a forte presença da violência de gênero, a mulher rompe o
relacionamento no momento da agressão, mas volta a se relacionar com o parceiro
após sentir a perda dos outros reforçadores e um pedido de perdão do parceiro. A
fragilidade do término do relacionamento pode ainda tornar o pedido de perdão
mais reforçador, aumentando a probabilidade que ela volte a se engajar no
relacionamento abusivo. Mas, ao voltar com o relacionamento, há o reforçamento
de uma cadeia de comportamentos que tendem a se repetir. Além disso, se os
reforçadores do comportamento masculino continuam a existir, não há mudança de
comportamento. Por isso, a existência do denominado “ciclo de violência”, que,
de acordo com Carmo e Moura (2010), funcionaria em um sistema circular e
estaria dividido em três fases: a fase da tensão, em que se caracteriza a
presença de discussões do casal e que antecede a fase da explosão, em que ocorre
a violência em si, que pode acontecer de maneira física ou psicológica, havendo
depois a chamada terceira fase, denominada de lua de mel ou reconciliação, em
que é marcada pelo arrependimento do agressor, desculpas e promessas.
Mas não é só
isso. Já nos lembrou Skinner, quando disse que “Escolhemos o caminho errado
desde o princípio quando supomos que nossa meta é "mudar a mente e o
coração" dos homens e mulheres, no lugar do mundo no qual eles vivem.” Por que a violência de gênero existe e
persiste há tanto tempo?
De acordo com
Carmo e Moura (2010) a violência de gênero trata-se de um fenômeno cultural e
histórico em que se observa que as relações entre mulheres e homens têm sido
historicamente desiguais, tendo a população feminina sido subordinada a ditames
masculinos e a uma cultura criada e regulada por homens que, até hoje impõem ou
tentam impor normas de conduta às mulheres e as devidas correções ao
descumprimento dessas regras, muitas vezes de forma sutil, embutidas nesse
relacionamento.
Ora, se uma
mulher está inserida em um relacionamento marcado pela violência doméstica,
diversos dos seus comportamentos vão ser marcados por essa prática cultural. Skinner (1953, 1981, 1987) alerta para a
necessidade da análise da cultura, fenômenos e problemas sociais pela Análise
do Comportamento manifestando seu interesse em que outros analistas do
comportamento também o estudassem, quando dedica boa parte do livro “Ciência e
Comportamento humano” a falar de cultura, agências de controle e comportamento
de pessoas em grupo. Para esse autor, o comportamento, além de mantido pelo
nível filogenético e ontogenético, também é controlado pelo chamado terceiro
nível de seleção, sendo esse o campo das contingências especiais de
reforçamento mantidas por um grupo.
Pode-se dizer
que a violência de gênero se trata de uma prática cultural em que há a presença
de uma classe de comportamentos cuja função é a subordinação de uma mulher ao
homem, ou seja, ter e manter uma mulher como seu objeto de prazer por meio de
forças coercitivas. Essas forças coercitivas podem envolver a violência
psicológica, como frases que envolvem a destruição de sentimentos relacionados
a autoestima e a autoconfiança ou mesmo a agressão física. Os reforçadores de
um homem ao engajar nesses comportamentos de manter uma mulher submissa são
vários, tendo sido essa cultura transmitida de geração em geração. Vejam que a
agressão física se trata apenas de uma forma de subordinação feminina, apesar
de ser a mais divulgada socialmente. Mas e as outras subordinações? A violência
começa quando é a mulher que tem que “cuidar do marido, da casa e dos filhos” e
não somente quando ela apanha. A violência existe quando a mulher escuta: “se
comporte que homem gosta de mulher quietinha”. A violência está presente quando a
mulher é pressionada a perdoar uma traição por ser “coisa de homem”. A
violência aparece quando se propaga o medo em mulheres viajarem “sozinhas”,
mesmo estando acompanhadas umas das outras. A violência se veste de cuidado quando a mulher
tem que pensar na roupa que vai vestir por medo de ser assediada.
Assim, a violência é passada desde cedo aos
meninos e meninas por meio de pequenas práticas culturais da nossa educação. Os
homens são ensinados desde cedo a serem privilegiados em nossa cultura e a
terem diversos reforçadores por meio das mulheres ou pela submissão delas. A
agressão física é apenas uma topografia desse comportamento que tem a mesma
função de tantos outros que permeiam os relacionamentos e que tendem a cercear
a liberdade feminina de diversas formas. Assim, ao se pensar em mudança social
e na promoção da diminuição da violência de gênero, deve-se pensar na mudança
da função do comportamento masculino e não na mudança de topografia. É preciso
mudar toda a prática cultural existente.
Ao longo da
história, sempre existiram mulheres que lutaram contra a submissão masculina de
alguma forma e tentam mudar essa prática cultural. O dia 08 de março, é na
verdade, um dia que lembra a luta das mulheres pela não submissão, emitindo
comportamentos de luta e resistência, que podem ser chamados de comportamento
de contracontrole, que é definido por Skinner basicamente como uma reação dos
controlados diante do controle aversivo emitido. Esse texto, como tantos outros
produzidos hoje podem ser uma forma de contracontrole e foi feito em homenagem
às mulheres que lutaram e lutam por uma sociedade sem tantos controles
aversivos. A análise dessa luta ficará pra um outro texto, mas a luta já está aqui!