segunda-feira, 7 de março de 2016

Violência de Gênero e a Análise do Comportamento.




A ideia de escrever esse texto veio de alguns atendimentos na Vara de Violência Doméstica do Tribunal de Justiça da Paraíba, comarca de João Pessoa, onde atuo como psicóloga em um dos trabalhos que venho considerando um dos mais desafiadores da minha história profissional. Além disso, fazia tempo que eu queria escrever sobre a psicologia jurídica e análise do comportamento e a ideia foi sendo adiada, por diversos motivos. O dia chegou. Vou ficar devendo um texto de infância e psicologia jurídica, mas ele virá. O momento e a semana pedem um texto de empoderamento feminino e como uma analista do comportamento enxerga esse tema.

O que um psicólogo faz em situações de violência de gênero? Em termos leigos, tenta promover a sensação de que ela pode fazer o que precisa e quer fazer, apesar da dor que permeia um relacionamento marcado pela violência de gênero. Em termos analítico-comportamentais penso que seria fornecer avaliações funcionais para que ela perceba que seus comportamentos e sentimentos de sofrimento fazem parte de uma contingência aversiva, como a violência doméstica, embora também repleta de reforçadores e dar subsídios para ela mudar essa contingência por meio de comportamentos autocontrolados.

Oc – Cpto – Sr+ (curto prazo)
                      Sr- (curto prazo)                    
                      P+ (médio/longo prazo)


Sim, geralmente mulheres que estão em sofrimento por fazerem parte de um relacionamento permeado pela violência de gênero ou popularmente conhecido hoje como um relacionamento abusivo, em geral trazem uma história cuja contingência básica de partida seria essa mesma. Assim como a de qualquer pessoa que procure a clínica porque não consegue sair de uma determinada situação que lhe causa sofrimento a longo prazo, ou seja, não consegue emitir comportamentos de autocontrole.
De acordo com Skinner (1974), “uma pessoa que tomou consciência de si por meio de perguntas que lhe foram feitas pela comunidade está em melhor posição para prever e controlar seu próprio comportamento” (pg. 35), ou seja, para que a pessoa consiga emitir comportamentos de autocontrole ou modificar contingências aversivas em que está inserida, é necessário primeiro que consiga descrever as variáveis que controlam seu comportamento. Nesse sentido, sim, uma mulher para sair de um relacionamento permeado pela violência de gênero precisa emitir comportamentos autocontrolados a partir do momento que consiga descrever as contingências que controlam seu comportamento de permanecer nesse relacionamento. Mas por que precisar emitir comportamentos autocontrolados para sair de uma contingência aversiva como a violência doméstica? Conceito básico na Análise do Comportamento: se um comportamento continua sendo emitido, há reforçadores que o mantém, mesmo que a contingência aversiva esteja ali e provoque tanto sofrimento. E que reforçadores? Vou elencar aqui algumas frases fortes entre textos lidos e atendimentos realizados:

“Não entendiam que, além de abusar de mim, ele era meu confidente, a pessoa para quem eu cozinhava, a pessoa que passava o domingo chuvoso assistindo TV comigo, a pessoa que ria comigo, a pessoa que me conhecia.” (texto Ele nunca me bateu – Um relato de um relacionamento abusivo, disponível em: http://keylaartes.blogspot.com.br/2016/02/ele-nunca-me-bateu-um-relato-de-um.html)

“ele foi a primeira pessoa que me chamou de linda e me valorizou. Foi ele quem cuidou de mim quando eu perdi meu pai e minha mãe arranjou um padrasto que me assediava”.

“como vou fazer pra viver sem ninguém dentro de casa, se eu me separar dele?”

“A mesma mão que me bate, me cuida e me acaricia."

"A sra. pode pedir pra ele parar de me bater?"

       



Nessas frases é possível perceber alguns dos reforçadores que mantêm um comportamento feminino de perdoar e permanecer em um relacionamento abusivo. Muitas vezes são os mesmos que mantém qualquer pessoa a emitir comportamento de se engajar em um relacionamento: reforçadores positivos, como carinho, companhia, risos, beijos, sexo, etc. Há também reforçadores negativos fortes, como esquiva da solidão, esquiva do sofrimento da perda dos reforçadores. Muitas vezes, em um relacionamento com a forte presença da violência de gênero, a mulher rompe o relacionamento no momento da agressão, mas volta a se relacionar com o parceiro após sentir a perda dos outros reforçadores e um pedido de perdão do parceiro. A fragilidade do término do relacionamento pode ainda tornar o pedido de perdão mais reforçador, aumentando a probabilidade que ela volte a se engajar no relacionamento abusivo. Mas, ao voltar com o relacionamento, há o reforçamento de uma cadeia de comportamentos que tendem a se repetir. Além disso, se os reforçadores do comportamento masculino continuam a existir, não há mudança de comportamento. Por isso, a existência do denominado “ciclo de violência”, que, de acordo com Carmo e Moura (2010), funcionaria em um sistema circular e estaria dividido em três fases: a fase da tensão, em que se caracteriza a presença de discussões do casal e que antecede a fase da explosão, em que ocorre a violência em si, que pode acontecer de maneira física ou psicológica, havendo depois a chamada terceira fase, denominada de lua de mel ou reconciliação, em que é marcada pelo arrependimento do agressor, desculpas e promessas.
                                                   

Mas não é só isso. Já nos lembrou Skinner, quando disse que “Escolhemos o caminho errado desde o princípio quando supomos que nossa meta é "mudar a mente e o coração" dos homens e mulheres, no lugar do mundo no qual eles vivem.”  Por que a violência de gênero existe e persiste há tanto tempo?

De acordo com Carmo e Moura (2010) a violência de gênero trata-se de um fenômeno cultural e histórico em que se observa que as relações entre mulheres e homens têm sido historicamente desiguais, tendo a população feminina sido subordinada a ditames masculinos e a uma cultura criada e regulada por homens que, até hoje impõem ou tentam impor normas de conduta às mulheres e as devidas correções ao descumprimento dessas regras, muitas vezes de forma sutil, embutidas nesse relacionamento.
Ora, se uma mulher está inserida em um relacionamento marcado pela violência doméstica, diversos dos seus comportamentos vão ser marcados por essa prática cultural.  Skinner (1953, 1981, 1987) alerta para a necessidade da análise da cultura, fenômenos e problemas sociais pela Análise do Comportamento manifestando seu interesse em que outros analistas do comportamento também o estudassem, quando dedica boa parte do livro “Ciência e Comportamento humano” a falar de cultura, agências de controle e comportamento de pessoas em grupo. Para esse autor, o comportamento, além de mantido pelo nível filogenético e ontogenético, também é controlado pelo chamado terceiro nível de seleção, sendo esse o campo das contingências especiais de reforçamento mantidas por um grupo.
Pode-se dizer que a violência de gênero se trata de uma prática cultural em que há a presença de uma classe de comportamentos cuja função é a subordinação de uma mulher ao homem, ou seja, ter e manter uma mulher como seu objeto de prazer por meio de forças coercitivas. Essas forças coercitivas podem envolver a violência psicológica, como frases que envolvem a destruição de sentimentos relacionados a autoestima e a autoconfiança ou mesmo a agressão física. Os reforçadores de um homem ao engajar nesses comportamentos de manter uma mulher submissa são vários, tendo sido essa cultura transmitida de geração em geração. Vejam que a agressão física se trata apenas de uma forma de subordinação feminina, apesar de ser a mais divulgada socialmente. Mas e as outras subordinações? A violência começa quando é a mulher que tem que “cuidar do marido, da casa e dos filhos” e não somente quando ela apanha. A violência existe quando a mulher escuta: “se comporte que homem gosta de mulher quietinha”. A violência está presente quando a mulher é pressionada a perdoar uma traição por ser “coisa de homem”. A violência aparece quando se propaga o medo em mulheres viajarem “sozinhas”, mesmo estando acompanhadas umas das outras. A violência se veste de cuidado quando a mulher tem que pensar na roupa que vai vestir por medo de ser assediada. 



                                    


 Assim, a violência é passada desde cedo aos meninos e meninas por meio de pequenas práticas culturais da nossa educação. Os homens são ensinados desde cedo a serem privilegiados em nossa cultura e a terem diversos reforçadores por meio das mulheres ou pela submissão delas. A agressão física é apenas uma topografia desse comportamento que tem a mesma função de tantos outros que permeiam os relacionamentos e que tendem a cercear a liberdade feminina de diversas formas. Assim, ao se pensar em mudança social e na promoção da diminuição da violência de gênero, deve-se pensar na mudança da função do comportamento masculino e não na mudança de topografia. É preciso mudar toda a prática cultural existente.  
Ao longo da história, sempre existiram mulheres que lutaram contra a submissão masculina de alguma forma e tentam mudar essa prática cultural. O dia 08 de março, é na verdade, um dia que lembra a luta das mulheres pela não submissão, emitindo comportamentos de luta e resistência, que podem ser chamados de comportamento de contracontrole, que é definido por Skinner basicamente como uma reação dos controlados diante do controle aversivo emitido. Esse texto, como tantos outros produzidos hoje podem ser uma forma de contracontrole e foi feito em homenagem às mulheres que lutaram e lutam por uma sociedade sem tantos controles aversivos.  A análise dessa luta ficará pra um outro texto, mas a luta já está aqui!