quinta-feira, 7 de março de 2019

As estações, o inverno e o tornar-se primavera

É a primeira vez que vejo e acompanho a mudança de estações. É meu primeiro inverno. Será minha primeira primavera. Antes disso, cheguei a passar alguns dias viajando no que eu chamei de fria primavera chilena e argentina. Mas essa é de fato a primeira vez que acompanho as estações. E o mais bonito que estou achando: a mudança delas. Períodos quentes de um fim de inverno, novas tempestades e as primeiras folhas e flores nascendo: “Tu vens, tu vens, eu já escuto os teus sinais.” Ao mesmo tempo que o inverno se despede, a primavera vai nascendo e vai mostrando sua beleza.
As arvores têm me ensinado a resistência do tronco. É necessário perder as folhas pra resistir aos períodos de vento forte, chuva, frio e ausência, ou pelo menos fraca presença da fonte do seu alimento, o sol. Perdem-se as folhas, fica um tronco nu, com aparência não tão admirada. Eu, por mim, talvez porque nunca tivesse visto de tão perto, vi a beleza de estarem assim, nus, sem folhas, mas essencialmente árvores. A árvore não deixa de ser árvore por estar sem folhas. Talvez fiquem mais parecidas entre si, nos deixando com dificuldades de perceber suas diferenças e sua espécie de folha, rosas ou frutos, mas continuam árvores.



Esses últimos dias de inverno, que têm sido mais frios e com vento forte, me ensinaram outra coisa sobre a resistência das árvores no inverno. Em uma noite com um vento que chegou a uivar na janela, pensei e comentei com uma amiga: a impressão que tenho é que amanhã não restará uma árvore em pé. Na verdade, sem exageros, cheguei mesmo a ter medo e imaginei que no outro dia visse algumas árvores caídas. No outro dia, vi uma tímida claridade por entre as frestas da janela e a abri. Uma tímida luz do sol tentava lutar entre nuvens que ainda pareciam espessas de chuva. O vento tinha diminuído. E, ao olhar pras árvores, a surpresa não foi apenas encontra-las, mas vê-las com mais folhas nascendo e com coloração mais verde. Algumas, com flores tímidas, como se viessem saudar o sol. E resolvi observar: a verdade é que nesse mês de março, todo dia as árvores me parecem mais verdes. Todo dia, tenho a impressão de ter visto novas flores.  Quase sempre tenho ido caminhar ou correr mesmo no frio. E já vinha acompanhando o nascer de folhinhas tímidas, em um tom verde-claro que vão se tornando maiores e com tom de verde mais escuro. E nesses dias tenho lembrado de Cecília Meireles: “aprendi com a primavera a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira.” E pensei que talvez fosse isso que as árvores vieram me ensinar: deixaram-se cortar pra resistir a períodos de vento forte, chuva e escassez de sol e calor para voltarem inteiras e vistosas na primavera.


Guimarães Rosa já tinha me ensinado que “o correr da vida embrulha tudo (...) esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta e o que ela quer da gente é coragem”. E aí penso: há quanto tempo essas árvores cá estão aguentando esse esquentar e esfriar, esse apertar e afrouxar das estações do ano? Há quanto tempo essas árvores cá estão aguentando vento forte, chuva, frio e sol “fraco”? É possível que os primeiros tenham sido mais difíceis. Não sei. Elas não me contam essa parte ou ainda não as aprendi a observá-las tão bem a ponto de compreender seu passado.  Ou, talvez, sejam como algumas pessoas que por aqui já encontrei e que dizem que nunca vão se acostumar completamente a esse frio. Mas, fato é que a vida exige delas coragem e elas têm. E nos mostram isso.


E, por hora, o meu aprendizado esses dias de imigração/mudança de ares, de país, de atividades e de estações de ano é: é necessário deixar-se cortar pra resistir mais facilmente a períodos de inverno na alma. Deixar cortar sabores que já não são tão fáceis ou mesmo possíveis. Deixar perder presenças físicas. Deixar perder a voz e um sotaque ao qual estamos acostumados. Deixar perder, talvez, até pessoas que não consigam resistir ao afastamento. Deixar perder pra resistir. Deixar-se desnudar de sabores que até então considerava essenciais. E aprender a se ver em uma nova essência. Desconstrução e reconstrução. Pensando bem, eu já vivi outros invernos. Talvez não tão físicos. E a presença física dele nos faz ter certeza que é preciso coragem pra enfrenta-los. E quando a gente menos esperar, talvez nasça uma flor. Quem sabe um jardim.


Por hora, agradeço a Deus e ao Universo essa oportunidade. E mais ainda, agradeço a possibilidade de sentir mais forte uma espiritualidade necessária nesse inverno. Talvez a ausência de folhas e a resistência das árvores tenha me ensinado a reaprender a ver o que não pode ser visto com os olhos do corpo.